Vitor Bertini
A história da sexta
A pena
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A pena

#71 Chegou flanando, silencioso, e pousou ao meu lado, no banco da praça.

Olá.

Os pássaros parecidos, aqui na minha janela, são, na verdade, pássaros diferentes.

Entre pios piedosos, pingos de pinga e parágrafos pungentes, boa leitura e bom fim de semana.


A PENA

Chegou flanando, silencioso, e pousou ao meu lado, no banco da praça. Pousado, ficou quieto um tempo. Depois, já no chão, alternando os olhos no ritmo sincopado de seu pescoço, catou algumas migalhas, disse algumas coisas e ficou me encarando – até ir embora. Ainda sou capaz de sentir no rosto a lufada de ar quente com pó e de ouvir o barulho surdo de suas asas enormes. 

Acompanhei sua trajetória em direção aos céus até o momento em que ele, voltando a cabeça, tornou a me olhar. Levantei do banco, juntei a pena que caíra, pensei na desproporcionalidade entre seu corpo e a envergadura de suas asas e, atrasado para a escola, segui meu caminho. Eu tinha ouvido um pássaro falar. 

Naquele tempo eu não era muito forte, as meninas iriam fazer perguntas e achei melhor calar sobre o que havia acontecido. Um pouco mais tarde, depois da aula, já em casa, também não contei nada: meu pai e minha mãe não andavam se entendendo bem – depois, piorou. 

Na universidade, estudei exatas: a força era massa vezes aceleração e o tempo, relativo. Mantive a pena escondida e deixei a neve cobrir os telhados da vida. Gostei.

São anos de silêncio, bancos ao ar livre sempre que me sinto desafiado e olhares para o céu quando enfrento problemas complexos – as pessoas não sabem em que voos busco respostas.

Acredito que a vida seja assim: falamos sobre algumas coisas e calamos sobre outras. 

Maria é minha esposa. Maria não sabe nada sobre pássaros, e nosso casamento vai bem. Tivemos um filho saudável; ela perdeu o emprego mas não dá muita bola; quando chora diz que não é nada; parece divertir-se com meus olhares para o céu e até comprou um banco de madeira para colocar no jardim. 

Só estou contando tudo isto agora, porque ontem foi um dia especial:

– Pai. Hoje, voltando da escola, um estranho pássaro falou comigo. Pode ser?
– Pode – respondi sem pensar.

A seguir, emocionado, corri ao escritório, recuperei a pena e voltei para beijar meu filho.

– Pode sim – repeti, apertando o abraço. – Guarde esta pena. É dele – falei baixinho.

Depois, enquanto ele examinava a pena, concluí:

– Não conta nada pra ninguém. Nem pra sua mãe.

Vitor Bertini

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  • Aqui, tudo é ficção; menos a pena;

  • Sexta, dia 10 de dezembro, tem mais;

  • Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.


FATIAS DE LIVRO

Quando as palavras das beatas viraram pequenos sons à distância é que Butka caminhou em direção ao cão vermelho e à sua cadeira na calçada. Nesse trajeto, como dois velhos que se conhecem pela fama, o olhar de um procurava a alma do outro. Tateando, o açougueiro localizou a cadeira, sentou, tirou o boné e secou lentamente a cabeça meio calva e a nuca, quase uma continuação das costas.

Uma vida em sessenta segundos depois, ainda sentado, imóvel, o olhar de Butka agora era refém de sua memória: Florença, 33 graus, o Rio Arno, a Ponte Vecchio, aromas da Aquaflor, a tumba vazia de Dante na Santa Croce, a Divina Comédia nas mãos e o cão Cerberus, o comedor de carne, na porta do Terceiro Círculo do Inferno, o Círculo da Gula.

– Tolo é quem toma as beatas por tolas – pensou em voz alta o açougueiro, voltando de sua viagem no tempo e na geografia.

Não me Abandone, Vitor Bertini, Esquina do Lombas

Este magnífico livro custa menos do que uma pizza média.

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