Barbeiro de Hospício
#41 Com relação aos impulsos de minha alma, faço como barbeiro de hospício.
Olá.
Hoje é sexta-feira, dia 7 de maio de 2021.
A propósito, a história de Raymond Carver, O que Falamos Quando Falamos de Amor, é o texto base da peça que o personagem Riggan Thomson está montando na Broadway, no filme Birdman, 2014.
O leitor mais atento sempre pode perguntar sobre o parágrafo acima: “a propósito” do que, mesmo?
– A propósito de um livro que vai pintar na história a seguir.
Entre um pequeno devaneio, histórias curtas, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
BARBEIRO DE HOSPÍCIO
José Luis frequentava o bar Túlia havia séculos, e eu não sabia seu nome. Chegava cedo, vinha sozinho, trazia um livro e um lápis, pedia um prato com carne e bebia da sua própria garrafa de vinho - uma deferência para poucos. Depois de jantar amassava o guardanapo, pedia para retirar a louça, olhava o relógio, esvaziava o que havia sobrado no cálice, acenava para o caixa e ia embora. Sem conversas.
Nossa mesa, o centro do mundo no Túlia, fazia da quantidade de amigos e da diversidade de pensamentos seu orgulho e fundamento para todas as discussões imagináveis. De disputas futebolísticas a definições kantianas, tudo valia a pena. As almas não eram pequenas.
Lembro bem da noite em que José foi convidado para sentar conosco. A conversa sobre casamentos - amena no princípio, duas garrafas de gin depois, transformou-se em uma feroz disputa na prevalência entre razão e impulso.
Em função dos argumentos gritados e antes que algo mais sério acontecesse, uma troca de olhares curiosos fez com que Joana, a bela Joana, ampliasse a roda:
– E o nosso amigo, o que acha? Não prevalece o impulso?
José Luis não se fez de rogado. Guardou o lápis, fechou seu livro, acenou para um dos garços apontando seu cálice, puxou sua cadeira, apresentou-se, disse que não gostava de falar, pediu perdão por ter ouvido, involuntariamente, parte da discussão e sorriu para Joana.
– Muito prazer – responderam os barulhentos, em coro.
– Não prevalece o impulso? – Repetiu Joana.
O convidado fez uma pausa dramática, tomou um demorado gole de vinho e sentenciou:
– Com relação aos impulsos de minha alma, faço como barbeiro de hospício: ouço o pedido, sorrio, não discuto e executo, com todos os cuidados, o que manda minha razão. Entretanto, cuidado, a alma não gosta de ser enganada.
Acima do vozerio que surgiu, Joana foi à luta:
– Pode até ser. Mas, me perdoe, quem puxou a cadeira, aqui, foi a sua alma. E, se ficar, também vai ser porque ela mandou. Será por impulso1
Algo encabulado, José Luis sorriu diante da gritaria. Minutos depois, quando o garçom foi servir mais vinho, colocou a mão sobre o cálice e, baixinho, comandou alguma coisa.
Ninguém soube dizer, mais tarde, se o celular do então chamado “barbeiro de louquinhos” havia realmente tocado, ou não. O fato é que ele levantou, atendeu o telefone, se afastou, tapou o bocal, voltou à mesa, sorriu simpático, recolheu seu livro, disse obrigado e boa noite, acenou para o caixa, e foi embora.
Só bem mais tarde, na hora de repartir a conta, é que fomos informados que ela já estava paga.
Não lembro da roupa do José Luis naquela noite, nem quanto tempo ele demorou a retornar ao Túlia; o livro, lembro bem, era O que Falamos Quando Falamos de Amor, de Raymond Carver.
No mês que vem, maio, Joana e José Luis completam dez anos de casados - a alma não gosta de ser enganada.
Vitor Bertini
Lembrou de alguém?
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