Cão Não Usa Máscara
#24 - Porque se eu afirmar que não bebo e disser tudo o que digo, vão me tomar por louco, seu padre. Quem bebe não usa máscara
Olá.
Hoje é a segunda sexta-feira do ano. Hoje é a segunda das cinquenta e duas sextas-feiras de 2021. Em todas, uma história.
Não tem uma história no meio do caminho. Nem no meio do caminho tem uma história. Na verdade, quem me dera ter, nos termos da pedra de Drummond, uma história no meio do caminho.
Tem uma história cada sexta-feira. Hoje é a segunda.
Entre um verso, um poeta, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
CÃO NÃO USA MÁSCARA
Padre Pedro era o pároco da Igreja de São Benedito.
Em uma manhã de segunda-feira, em uma roda de senhoras, resguardado por uma discreta máscara, padre Pedro se queixava da falta que sentia do convívio com os fiéis nas missas dominicais - agora realizadas virtualmente, quando foi interrompido por um homem acompanhado de um cão.
– As pessoas hoje em dia têm mais interesse em assuntos do diabo do que de informações sobre o céu – disse o desconhecido de olhos brilhantes, enquanto o cão, orelhas baixas, sentava na calçada.
– Como você se chama, meu filho?
– Nasci em vinte e nove de agosto, seu padre.
Indiferente aos olhares franzidos de reprovação que acompanhavam as máscaras bordadas com as iniciais de cada uma das senhoras, padre Pedro não se fez de rogado e, curioso, sorrindo, prosseguiu:
– Meu filho, me diga um coisa: por que você não está usando uma máscara, como todo mundo?
– Se eu fosse como todo mundo, talvez usasse, seu padre.
– Posso saber por que você pensa que não é como todo mundo?
– Porque bebo, seu padre.
– E por que você bebe, filho de Deus?
– Porque se eu afirmar que não bebo e disser tudo o que digo, vão me tomar por louco, seu padre. Quem bebe não usa máscara.
– E você pensa em usar?
– Seu padre, todo o mundo é que faz coisas sem pensar.
– Não sei se entendi – falou o condutor da paróquia, com ares de quem espera uma nova frase, ou explicação.
Dez segundos de silêncio, o olhar fixo e um sorriso enigmático em sua direção fizeram com que padre Pedro, prudente, mudasse de assunto:
– E esse atento cão, é seu?
– Eu ando com ele e ele anda comigo, mas não sou o dono dele não.
– Será que ele não tem um dono?
– É por isso que digo que bebo, padre. Afinal, quem é dono de quem neste mundão de Deus?
– E nome, ele tem nome?
– Começamos a andar juntos em trinta de agosto, um dia depois de meu aniversário.
– Acho que entendi. E foi você quem ensinou ele a sentar?
– Normalmente, quando senta, humilde, ele é que me ensina – respondeu o homem, olhando para o cão.
A seguir, calado, ajoelhou-se, abraçou seu companheiro de rua e, sendo lambido, chorou. Ao levantar, desviou seu olhar.
– Muito bem. Está tudo muito bem! Tudo bem – disse padre Pedro, encaminhando, resignado, o fim da conversa. – Gostei muito de conhecer você. Quero vê-lo na Igreja de São Benedito, assim que as missas presenciais forem liberadas!
– Padre, tempo virá em que a colheita será igual à semeadura – falou o homem, agora de olhar longínquo, espetando um dedo em direção aos céus.
Depois, como um maestro a reger o silêncio, voltou-se em direção ao cão sentado. Um sutil movimento de mão colocou o amigo nas quatro patas e lá se foram os dois, mão e rabo abanando, caminhando na direção de onde vieram.
Na manhã seguinte, terça-feira, as beatas do padre Pedro faziam compras no bairro e, sem a presença do pároco, mesmo usando máscaras, falavam e falavam.
Foi assim que Georgy Butka, o açougueiro que ouvia clássicos, soube da existência de uma espécie de profeta andarilho que atendia pelo nome de Vinte e Nove de Agosto e andava com um cão.
Também foi assim que Peter Cat, o dono da cafeteria, teve certeza que, para os excluídos da cidade, máscaras fazem pouco sentido.
Vitor Bertini
Quem sabe eu compartilho?