Vitor Bertini
A história da sexta
Cuco
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Cuco

#61 – Acolher bem é reconhecer o outro.
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Olá.

Hoje, última sexta-feira de setembro, já é primavera. Ruim de calendários, salvou-me o barulho imenso da explosão de suas cores e cheiros: bem-vinda.

Nas pequenas novidades, uma velha paixão: https://twitter.com/nrgremista - todos convidados.

Entre amores, frases curtas e flores, um bj, boa leitura e bom fim de semana.


CUCO

No meio do campus universitário, o centro do mundo. No centro do mundo, uma cafeteria.

A cafeteria da faculdade de arquitetura era ponto obrigatório para estudantes de todos os cursos: pela suposta qualidade do café – única que dizia ter grãos de origem –, pela temperatura da cerveja, pelas conversas interdisciplinares e, forçado reconhecer, pela beleza das alunas.

– Todas as tribos passam por aqui – explicava Antonela, Antonela Matteo, enquanto apresentava as dependências da escola para uma caloura, filha de amigos da família. Depois, à tardinha, em horário de casa cheia, devidamente instalada com duas colegas em uma das mesas, ainda com a novata à tiracolo, sofisticou o discurso:
– Acolher bem é reconhecer o outro… e a melhor arquitetura faz isto! – Ensinou, elevando o tom de voz e exemplificando, com um giro de queixo empinado, o que queria dizer.

Na mesa ao lado, um grupo de estudantes de geologia misturava cervejas com placas tectônicas. Entre eles, Eduardo. Formando, veterano em ambientes bem mais rústicos, Eduardo ouviu embevecido os conceitos sobre a melhor arquitetura, e se encantou pelo queixo empinado.

Foi o aplauso das amigas aos ensinamentos de Antonela que deu a deixa que Eduardo precisava: aplaudiu junto, arrastou a cadeira até a mesa das arquitetas e fez uma provocação qualquer sobre estética e tempos geológicos.

Um ano de trocas conceituais, cervejas em qualquer temperatura e risadas com aplausos, resultou em uma cerimônia de casamento simples, repleta de amigos, na orgulhosa casa reformada - o primeiro projeto de Antonela.

– Somos cosmopolitas e acolhemos o outro – declarou a noiva, toda sorrisos, festejando a presença de todos.

Anos depois, triste, com voz frágil, Antonela repetia a frase:

– Somos cosmopolitas e devemos acolher o outro – falou, iniciando as tratativas sobre a separação.
– Espero que consigamos levar isto até o fim sem brigar – devolveu Eduardo, olhando para o chão.
– Por favor… – murmurou a esposa, indo buscar dois copos d’água.

Casal de poucas posses e muitas lembranças, as divisões seguiram a harmonia buscada pela arquitetura sob o complacente silêncio de tempos geológicos:

– Fica bem assim pra você? – Perguntou a arquiteta, enxugando uma lágrima, depois da leitura de um detalhado rol de bens e seus respectivos destinos.
– Fica, fica sim – murmurou o geólogo, ainda cabisbaixo. – Você só esqueceu de incluir o relógio da sala. Mas, sem galho, foi mamãe quem nos deu; eu fico com o cuco – ponderou Eduardo.
– Eduardo, o cuco está no nicho projetado especialmente para ele. Sem o cuco, aquele nicho não faz sentido. Não interessa quem nos deu… 
–  O cuco era de mamãe; eu levo o cuco.
Eduardo, o cuco é o centro estético do meu projeto!
Antonela, se é por isso, o cuco marca a porra do tempo geológico da minha mãe! – gritou Eduardo, batendo os calcanhares e a porta.

As duas petições de Ação de Divórcio Litigioso foram entregues no Foro da Cidade no mesmo dia, quase na mesma hora.

Vitor Bertini

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  • Aqui, tudo é ficção;

  • Este texto foi originalmente distribuído em 09 de outubro do ano passado e, com ele, espero encerrar o ciclo dos replays setembrinos;

  • Sexta, dia 1º de outubro, tem mais;

  • Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.


FATIAS DE LIVRO

Na semana passada este quase apêndice - aqui no fim, saiu de “furão”. Hoje, a reprodução é de caso pensado.

Eu acredito no brasileiro e pior do que isso: – sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades: o “complexo de vira-latas”. Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, face ao resto do mundo. Isso em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Em Wembley (Inglaterra 4 x 2 Brasil, em 1956), por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular, o nosso vira-latismo. na já citada vergonha de 1950, éramos superiores ao nosso adversário. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo simples: porque Obdúlio (Obdúlio Varela, capitão do Uruguai) nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

O problema do escrete não é mais futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: – para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.


– Nelson Rodrigues, em Meu Personagem da Semana, Manchete Esportiva, 1957 - citado em O Anjo Pornográfico - A vida de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, Companhia das Letras.

Preço: ainda, menos do que uma pizza média.



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Vitor Bertini
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