A Curva do Rio
#40 Certo fim de tarde, no horário das sombras compridas, lá se foi Carlinhos.
Olá.
Hoje é uma sexta-feira de um texto mais longo, de um ano interminável e de esperanças infinitas. Força na peruca!
Entre uma correnteza, uma página, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
CURVA DO RIO
Carlinhos trabalha na cidade, mas não mora na cidade.
Carlinhos gosta de pescar na curva do rio que corre nos fundos de sua casa, atrás dos eucaliptos, do outro lado das pedras, e de onde, sentado, avista o pontilhão de madeira.
Atravessando o pontilhão, moram os que não trabalham na cidade.
Carlinhos pesca com caniço de linha e rolha, anzol pequeno e iscas de minhoca. Vai pescar sozinho, em silêncio. Antigamente, levava um radinho de pilha; hoje, leva uma térmica com café preto e um pedaço de bolo em sua velha mochila do exército.
– O segredo é a concentração na rolha. Focando nela você não perde a fisgada e esquece os problemas. – Ensina, mesmo quando o assunto não é pescaria.
Suas idas ao rio não tem rotina. Dependem do sol, da lua, do vento, do seu humor, do clima em casa ou dos aborrecimentos da vida. Às vezes, do bolo.
Certo fim de tarde, no horário das sombras compridas, por alguma das razões ruins, lá se foi Carlinhos de caniço e mochila. Naquele dia, apesar dos ensinamentos, não havia rolha que prendesse o olho do pescador.
E foi assim, olhando sem ver, que ele acompanhou uma mãe e seu bebê de colo caminhando devagar na estrada do velho pontilhão. Vinham da direção do sol vermelho. Quando a silhueta de contornos escuros parou no meio da ponte e levantou os braços, a correnteza fez silêncio e Carlinhos prendeu a respiração.
Depois, o mergulho e o desespero para conseguir enxergar o bebê naquela água escura e fria.
Criança em uma mão, calça atrapalhando os movimentos, respiração encurtando, um braço que remava, até que os pés, finalmente, encontraram pé - um pouco adiante da curva, quase embaixo do pontilhão.
O alívio com o choro da criança só não foi maior do que o espanto de ver a mãe, rosto molhado, de pé, na margem, braços abertos, esperando o filho. Um segundo de hesitação, nenhuma palavra trocada, um olhar mais demorado e lá se foram, mãe e filho. Agora, quase correndo.
Carlinhos não contou nada para ninguém e começou a ir pescar, no mesmo horário, todos os dias. Voltava ao local do espanto, procurando respostas. Esqueceu a rolha, não levava café, e não tirava os olhos da estrada e do pontilhão. Nenhum peixe, e nenhum sinal da mãe e seu bebê.
Foi no fim do quinto dia, quando Carlinhos já pensava em ir embora, que a lenta aproximação de uma viatura da polícia trouxe, junto com uma descarga de adrenalina, a certeza de problemas.
Estacionou a dez passos do pescador que fingia olhar fixo para o rio. Desligou o motor; não desligou as luzes vermelhas que giravam sem parar. Uma eternidade depois, quase simultaneamente, o barulho de duas portas abrindo e fechando. Carlinhos transpirava.
– Esta mochila é sua? – Perguntou o primeiro policial.
A resposta foi uma cabeça acenando que sim, enquanto via o outro policial retirar uma camiseta, um emaranhado de fios de nylon e uma gaita de boca enferrujada de dentro da mochila. Silêncio.
– Você pesca sempre por aqui?
– Hum, hum.
– Pegou algum peixe hoje?
– Não, hoje tá ruim – balbuciou Carlinhos.
– Veio ontem?
– Hum, hum.
– Antes de ontem?
– Acho que faz uma semana que venho todos os dias.
– Sei… – devolveu o segundo policial, fazendo novo silêncio.
– Algum problema? – Perguntou o dono da mochila, juntando, sacudindo e guardando o que estava espalhado.
– Não temos certeza. Você viu alguma coisa estranha ou fora do comum acontecer por aqui nestes dias?
– Não, acho que não – respondeu Carlinhos, sacudindo a cabeça e baixando o olhar.
– Mulher? Alguma namorada pescando com você?
– Sou casado – disse entre dentes, começando a enrolar a linha no caniço.
– Estranho. Um mulher, a dona Cenira, foi lá no posto e contou uma história diferente. Disse que não aguentava mais um monte de coisa na vida, estava desesperada, não sabia o que fazer, e jogou o filho no rio. Aqui, desta ponte velha. Neste horário. Mais, disse que um homem, na descrição parecido com você, salvou a criança. Mergulhou, nadou e tudo o mais. Depois, entregou a criança para a própria dona Cenira. Ela disse que o homem salvou a criança e ela. Disse que ela precisava contar para alguém, por isso foi lá. Depois, foi embora. Nem BO quis fazer.
– Você conhece a dona Cenira? Ou uma tal de Cenira? – Perguntou o segundo policial.
– Não sabia que era esse o nome dela.
– Quer dizer, então, que foi você? E você não achou nada estranho nisso? Não acha que esta história está mal contada?
– Foi isso que aconteceu. Não sei porque ela fez isso. – Respondeu Carlinhos olhando, pela primeira vez, nos olhos dos policiais.
– Ok, ficamos assim… Mas, atenção, abre o olho. Sabemos onde você pesca… Mas, também sabemos onde você mora. – Finalizaram os policiais, falando ao mesmo tempo, pelas janelas da viatura já em movimento. Alguns metros depois, desligaram as luzes vermelhas.
Carlinhos continuou a ir lá na curva do rio. Só não conseguia jogar a linha na água.
Assim foi, até o dia em que o vento da tardinha trouxe, outra vez, Cenira e seu bebê. Carlinhos, quase sem respirar, era só um par de olhos fixos. Ela veio pela estrada, entrou na ponte, parou no meio do caminho, olhou para a margem, deu um beijo no filho e abanou.
Carlinhos enxugou os olhos, serviu uma caneca de café, pegou um pedaço de bolo, jogou a linha na água, e focou na rolha.
Vitor Bertini
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Filha do Millor, a frase “livre pensar é só pensar”, começa a ganhar linhas no meu canto no Twitter: @vitorbertini - you are welcome;
Notícia. Esta é uma publicação de ficção. Todos os personagens e suas circunstâncias são ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência;
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