Vitor Bertini
A história da sexta
Dona Baltasar
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Dona Baltasar

#69 Marcelo usava suspensórios, falava pouco e era incapaz de um gesto brusco.

Olá.

Isaac Babel (1894 - 1940) é um espetacular autor russo de histórias curtas. Gosto do seu texto, de suas histórias e da história de sua vida.

Em seu livro de memórias Anos de Esperança, Konstantin Paustovsky (1892 - 1968), descreve uma visita ao gabinete de Babel. Surpreendido com uma pilha de páginas manuscritas sobre uma escrivaninha, imaginou que o célebre escritor estivesse finalmente escrevendo um romance. Não, respondeu Babel.

Eram 22 rascunhos de seu mais novo conto.

Entre exercícios sobre textos, parágrafos e frases, um bj, boa leitura e bom fim de semana. Quem quiser beber, fique à vontade.


DONA BALTASAR

Terceira geração a comandar os negócios da família, Marcelo usava suspensórios, falava pouco e era incapaz de um gesto brusco. Nem sempre foi assim. 

Houve um tempo onde disputar e assumir a presidência da empresa, pagar as dívidas, rejuvenescer a marca, reestruturar tudo e avançar em novos mercados parecia exigir outros atributos.

Vem daquela época, a época dos números vermelhos, a lenda que assombra, até hoje - dizem, as reuniões na companhia:

Sono un carnivoro! – gritou e repetiu Marcelo, enquanto tirava o cinto das calças e açoitava a mesa, encerrando uma reunião de apresentação de resultados ruins.

Foi Dona Baltasar, a mais antiga entre as secretárias, quem teve a coragem de entrar na sala de quem parecia alucinado:

– Expomo-nos mais num único instante de fúria ou contentamento do que em muitas horas de indiferença, meu filho – disse, alcançando um copo com água para o neto do fundador da companhia.
– O que a senhora faz? – Perguntou Marcelo, ainda sem o cinto.
– Leio, meu filho. Leio.
– E na empresa?
– Ajudo meninos a colocarem cintos – afirmou, antes de aceitar o convite para trabalhar no gabinete.

Os resultados azuis, o tempo, as leituras de Dona Baltasar e o segundo casamento foram os principais responsáveis pelas mudanças no comportamento de Marcelo. 

– Os sensatos retardam o julgamento sobre o que ouvem – ensinou a secretária certa vez, quando a impulsividade de Marcelo ameaçava suas relações com o Conselho de Administração da própria empresa.
– Dona Baltasar, em linguagem mais simples como é que fica?
– Não existe sábio a cavalo - traduziu e, diante do silêncio do chefe, acrescentou:
– É um ditado espanhol – colocando um ponto final nas citações.
– Acho que entendi – disse o presidente, voltando a sentar. –  Com a calma recomendada estou indo para a Itália, Dona Baltasar. Vou retardar os julgamentos – completou, sorrindo com jeito de quem tinha assimilado a frase, rabiscando uma folha de papel.

Foi desta viagem que vieram os primeiros suspensórios e a nova esposa.

Le mie bretelle – exibiu-se o presidente, treinando colocar os polegares atrás do novo acessório.
– Muito bem, muito bonitos. O senhor ficou muito elegante. Entretanto, atenção: o gosto, assim como o intelecto, exige cultivo. Saiba como usá-los.
– Frase de algum livro, Dona Baltasar?
– Sim, sempre. Esta é do livro A Arte da Prudência, do Gracián – respondeu, omitindo, com um leve sorriso, o primeiro nome do autor.
– A senhora já sabe que noivei, não sabe?
– Sei sim, e vou continuar no mesmo livro: um grama de prudência vale mais do que uma arroba de habilidade – e aconselhou, saindo da sala:
– Cuide da moça.

Tempo depois, casado, feliz, tomando um café com sua secretária e fazendo confidências autorizadas pelo tempo de convívio, Marcelo lembra a frase que os aproximou:

– Dona Baltasar, novamente sono un carnivoro! A Giulietta, entre outras qualidades, faz uma Bisteca à Fiorentina fantástica. Até achou um açougue de um italiano, lá perto de casa - eu não conhecia, que vende bistecas maravilhosas.
– Açougueiro vende carne e entrega cumplicidade, meu presidente.
– Livro, Dona Baltasar?
Não me Abandone, de um tal de Vitor Bertini.
– Não conheço, mas gostei da frase – afirmou o chefe, e continuou:
– Aliás, hoje ela não vai poder ir ao açougue e me pediu para passar por lá. A compra já é para estar separada – encerrou.

A visita de Marcelo ao açougue durou o tempo suficiente para apanhar o embrulho, pagar a conta e notar, no canto do balcão, uma pilha de livros. Sobre todos eles, A Divina Comédia - Mário não conseguiu decorar o nome do autor, e, de pé, encostado na pilha, Para Viver um Grande Amor, de Vinícius de Moraes.

– Dona Baltasar. Vinícius de Moraes é o nosso músico, não é?
– Sim, e um espetacular poeta. Autor de alguns dos mais sedutores versos de amor que já ouvi – respondeu. A seguir, espichando o pescoço em direção à sala do chefe, perguntou:
– Vai começar a ler, meu presidente?
– Estou pensando.

Naquela noite, durante o jantar, Marcelo comunicou à esposa que não gostava mais de bistecas.

Vitor Bertini

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FATIAS DE LIVRO

And then, whether the work was good or bad, whether it did what you hoped or it failed, as a writer you shrug, and you go on to the next thing, whatever the next thing is.

That’s what we do.

The view from the cheap seats, Neil Gaiman, William Morrow

O preço?
– O mesmo que uma pizza média.


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