O dia em que matei meu pai
#88 Minha dor não começa no dia em que matei meu pai.
Verborgen, 1º de abril de 2022.
Parece mentira, mas é sexta-feira.
Entre datas, saudades, páginas e textos, um bj, boa leitura e bom fim de semana.
TEXTOS DE ESPANTO - O DIA EM QUE MATEI MEU PAI
Minha dor não começa no dia em que matei meu pai.
Uns dias depois do dia em que matei meu pai, caminhei até a delegacia e contei tudo. Contei que ele falava alto, gritava muito, nunca acreditava em mim e que isso talvez fosse tudo.
Disseram que minha história não interessava, interessava se eu tinha matado meu pai ou não.
Repeti que sim, eu havia matado meu pai.
Perguntaram por que eu tinha feito isso, matar meu pai.
Devolvi que minha história não interessava.
Então sorriram e perguntaram quando, onde e como eu havia matado meu pai.
Respondi que foi uns dias atrás, na casa em que ele tinha me criado. Depois, falando baixo, contei que tinha atirado duas vezes no peito dele com um revólver calibre 38 especial, 655 gramas, 5 tiros, punho de borracha, cano curto e acabamento cromado.
O delegado começou a gritar dizendo que esse revólver não existia e que eu não matara o bosta do meu pai.
Eu gastei as últimas três balas no peito do delegado. Ali começou a minha dor.
Vitor Bertini
TEXTOS RESERVADOS
A beleza da coisa é a irmã bem-humorada do aí que me refiro.
Palhaço assustador. Sério.
Clarice sentia calor quando usava óculos.
TAKE A PEEK
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm ou vêm muito numerosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
– São Bernardo, Graciliano Ramos. Record, 83ª edição, 2006.
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