A História da Sexta

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O presente de dona Cilda
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O presente de dona Cilda

#84 Germano não teve dúvidas: sua mãe achava que ele andava lendo pouco.

Vitor Bertini
Mar 4
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Kiev, 04 de março de 2020.

Sentimento estranho o de quem caminha na neblina.
– Neblina, Herman Hesse

Com os cuidados que os tempos exigiam, Nikita apurou o ouvido: jurou ter ouvido uma simples história.

Boa leitura e bom fim de semana.


O PRESENTE DE DONA CILDA

– Sua mãe gostou do livro?
– Adorou. – Respondeu Germano, sorrindo satisfeito, sem tirar os olhos da carta de vinhos.
– Eu tinha certeza que dona Cilda ia gostar – completou Ana Márcia, também sorrindo.

Germano esperava a pergunta. O que ele não esperava era ouvir o apelido de sua mãe.

Arcilda Atti, dona Cilda para os íntimos, mãe de Germano, era uma mulher independente, refinada, culta e reservada. A viuvez, havia dez anos, ao contrário do que todos pensavam, apenas reforçara sua individualidade. 

– Cuidem de suas vidas. Da minha, cuido eu – declarava, solene, com voz calma, sempre que provocada.

Coerente com o que pedia para si, dona Cilda raramente se manifestava sobre os haveres dos filhos, todos adultos.

Entretanto, quando o impulso de mãe falava mais alto e alguma intervenção parecia necessária, valia-se de um método muito próprio para insinuar atitudes ou reflexões: pedia presentes. 

Certa ocasião pediu que Germano, então com um pequeno sobrepeso, lhe desse de presente uma esteira.

– Destas para se exercitar em casa. Capriche na escolha, e reflita sobre a importância dela para a saúde de sua mãe.

Assim, quando recebeu o pedido para comprar alguns livros, Germano não teve dúvidas: sua mãe achava que ele andava lendo pouco. 

– Qual gênero, mamãe? – Perguntou, ouvindo a resposta já na porta do elevador:
– Quem sabe literatura alemã?

E lá se foi às compras o filho de dona Cilda, rindo sozinho, disposto a comprar livros também para si.

Na chegada à livraria, intimidado como quem entra em uma casa de vinhos sem saber o que significa varietal, dirigiu-se à primeira funcionária a cruzar seu caminho:

– Por favor, literatura alemã?

A atendente virou-se para conferir a direção da cliente com quem falara há instantes e, sem olhar para Germano, apontou:

– Siga aquela moça. Ela está indo para lá.

Da seção de literatura alemã até a mesa do restaurante onde Germano escolhia o vinho foram suficientes cinquenta minutos de seleção de livros, um café, dois telefonemas e três dias.

Agora, depois daquele inesperado “dona Cilda”, apesar de encantado com a companhia, Germano achava que mamãe tinha ido longe demais. Um pouco zonzo, com um sorriso preso, ele retoma um pedaço de diálogo qualquer, tentando ganhar tempo e chão:

– Quer dizer que a literatura alemã já tem quatorze prêmios Nobel?
– É a segunda mais premiada, junto com a francesa. Países de língua inglesa já somam trinta – respondeu, Ana Márcia.

No silêncio de Germano, autores e obras alemãs iniciaram seu desfile:

– Thomas Mann… Gunter Grass… A Montanha Mágica… O Tambor… Às vezes as pessoas nem sabem que são obras de autores alemães… O Perfume… O Lobo da Estepe, do Hesse… Adoro Sidarta…

Com a voz perdendo ânimo e os tempos entre as frases ficando cada vez maiores, Ana Márcia encerrou seu monólogo. Tomou um gole de água, respirou fundo e, sem entender o silêncio e o distanciamento de seu novo amigo, provocou, algo incomodada com a situação:

– Até no Diabo eles são especialistas. Começou com Goethe, passou por Thomas Mann, deu um pulo na Dinamarca com Kierkegaard… e terminou em uma mesa de restaurante no Brasil. 

Diante de um olhar ainda distante e insensível à provocação, Ana elevou o tom:

– Você é fogo…

Piscando e sacudindo a cabeça, voltando de seus pensamentos, Germano, que não tinha ouvido nada sobre os alemães e seus textos, instintivamente seguiu o verso da última e única frase que captara:

– Eu sou paixão…

Desconfiada, Ana Márcia, arriscou continuar:

– Você é luz, é raio estrela e luar.
– Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô – cantarolou Germano, iluminando o rosto.
– Wanderley Alves dos Reis – exclamou ela.
– Wando! – completou ele, gargalhando e segurando, pela primeira vez, a mão de sua convidada.

Somente no fim do vinho, Germano teve coragem para recriminar a dupla e dizer que não era bobo - sabia da combina entre ela e sua mãe. Mas, precisava confessar, estava achando tudo uma maravilha.

Sorrindo, algo encabulada, Ana Márcia esclareceu que só sabia o apelido porque, ainda no café da livraria, enquanto Germano ia ao banheiro, havia bisbilhotado e lido a dedicatória: “Para minha amada mãe, dona Cilda”.

Germano pensou na mãe, ficou vermelho e, rindo alto, comandou mais uma garrafa de vinho. Alemão. Depois, juntos, cantaram músicas do Wando até fechar o restaurante.

Vitor Bertini


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  • Nada por aqui é real, tudo é surreal. O texto é ficção;

  • Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.


TAKE A PEEK

A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxurioso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência.

– O Lobo da Estepe, Hermann Hesse, Civilização Brasileira, 1970

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