Vitor Bertini
A história da sexta
Pata Branca
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Pata Branca

#65 Assim fazem os reis.

Olá.

Hoje é sexta e, confesso, deve ser a primavera, não tiro Bénya Krik da cabeça. Falei dele na semana passada, você lembra?

Então, você já começou a pensar em presentes de Natal? Fale comigo.

Entre comerciais e diálogos, livros, goles e beijos, boa leitura e bom fim de semana.


PATA BRANCA

Abandonado, e essa história já foi contada, Blau não tinha memória dos cheiros de sua nova vida. Agora, tudo que ele tinha era medo, vergonha, um vago sentimento de culpa pelo próprio abandono e, do outro lado da rua, o olhar fixo de um cão que ele não sabia se chamar Bénya Krik.

Sem sustentar o olhar de Bénya, Blau desceu do lixo em que fora largado e começou a andar em frente. Em silêncio, quase ao compasso da música que ganhava intensidade, seguiram cada um de um lado da rua, até o momento em que Bénya parou. Pararam quando o primeiro canhão da Abertura 1812 de Tchaikovsky enchia a calçada e seus quatro ouvidos sensíveis. Pararam em frente a uma loja branca de onde saía, junto com a música, um avental sujo de sangue trazendo nas mãos um cutelo e um pedaço de carne, gritando em direção ao outro lado da rua:

– Bénya, meu Rei! Salve! – e, pousando o olhar no novato que agora tremia, seguiu. – Pata Branca! Pata Branca! – disse, jogando o naco de carne na calçada. – Proteína! Coma, Pata Branca! Proteína! Belok! Belok! Proteína para enfrentar o mundo! Foi a primeira vez que se ouviu o nome Pata Branca.

Depois, quando a música e a carne já haviam terminado, foi que Georgy Butka, o açougueiro, sentado em sua cadeira reclinada contra a parede, secou os olhos. 

Apenas Bénya Krik, no outro lado da rua, não havia mudado de postura. De pé, olhar ainda fixo no cão sujo de tinta, aguardava. Alimentado, Pata Branca recomeça a andar, seguido por Bénya. O caminho que percorreram pareceu longo como a vida andando pra trás. Tão pra trás que, quando deu por si, o pequeno Blau, aquele que não existia mais, estava de volta, na frente da residência da família Hatt. Foi a primeira vez que Bénya sentou.

Pata Branca sentiu o remanescente cheiro de café vindo da casa, lambeu o focinho, sentiu o gosto da carne crua e, sem olhar para trás, atravessou a rua. Bénya se pôs de pé, colocou Pata Branca a caminhar e seguiu dois metros à frente. Assim fazem os reis.

Vitor Bertini

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  • Qualquer texto envolvendo um cão chamado Bénya Krik é meu e é ficção. Eu inventei;

  • Este texto é um capítulo de Não me Abandone, Vitor Bertini, Editora Esquina do Lombas;

  • Belok significa "proteína” em russo;

  • Sexta, dia 29 de outubro, tem mais;

  • Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.


FATIAS DE LIVRO

– Sr. Bennet, como pode ofender suas próprias filhas desta maneira? Você se compraz em me irritar. Não tem nenhuma compaixão pelos meus pobres nervos.

– Você se engana, minha cara. Tenho grande respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Ouço você mencioná-los com consideração há pelo menos vinte anos.

– Diálogo entre o Sr. e a Sra. Bennet, em Orgulho e Preconceito, Jane Austen.

Não é uma maravilha?
Preço? O mesmo de uma pizza média.

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