Olá.
Hoje é sexta-feira, 16 de julho do inacreditável ano de 2021.
Eu tenho muitos amigos e Carlos é um deles.
A literatura e a vida estão cheias de histórias sobre amizades: íntimas, nem tão íntimas, próximas, afastadas, recentes, antigas, queridas, interesseiras, sazonais, virtuais, que viraram amor ou ódio, e até aquelas que simplesmente ficaram esquecidas nas inevitáveis esquinas do tempo.
Carlos é uma amizade antiga, mas andávamos distantes. Sinceramente, não sei as razões do meu afastamento. Da parte dele nunca faltou uma palavra, uma frase ou um parágrafo de incentivo ou compreensão aos meus devaneios e sonhos, mesmo os mais loucos. Coisas da vida.
Esta semana, por impulso, tomei um tempo e visitei o Carlos. A acolhida de sempre, o mesmo sentimento, a mesma sensação de leveza na alma, o mesmo sorriso e algumas novidades.
A primeira das novidades, eu jurando que não sabia e ele jurando que já disse muito sobre o tema, é sua paixão pelo cinema.
– Desde “Diana, a Caçadora” – afirmou, sorrindo mineiramente.
A segunda novidade, eu recebi datilografada em uma folha de caderno de pauta simples, dobrada sobre si mesma, e com uma frase escrita à mão: seiscentas e seis palavras, em prosa, contando uma historinha.
Eu, que dele só ouvia versos, resolvi compartilhar com vocês.
Entre filmes, dois dedos de prosa, goles e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
A VIÚVA DO VIÚVO*
Conheceram-se, namoraram, casaram, tiveram filhos, desamaram, separaram-se, depois de tanto verbo conjugado em comum. Ele sumiu por aí, no anonimato sem responsabilidades. Ela ficou criando a trinca sem pai. Sem notícias um do outro, tempo passando, acontecimentos acontecendo, vida no corre-corre. Ela até nem se lembrava mais de que fora casada. Eis que o marido reaparece na lembrança, quando uma filha lhe diz:
– Mãe, o pai está no hospital.
Que pai? Não sabia de pai nenhum, o seu morrera há tanto tempo, depois de dar tanto trabalho. (Descansa em paz, deixando a família descansada.) Há outros pais vivos por aí? De quem?
– O meu, uai.
Ah, sim. O pai desta moça que está à sua frente, esta moça que é sua filha, e que antigamente tivera um pai. Um pai que fora seu marido, e que nunca mais aparecera, jogando sobre suas costas a obrigação de criar e educar os filhos. Como as coisas emergem de um poço escuro, de repente! Pois não é que o ex-marido voltava à tona, com seus sinais particulares, seu modo de falar, seu jeito de ser e viver? Tão antigo, tão inexistente - mas ali.
Ela parecia não dar mais atenção ao que a filha ia dizendo.
– Escutou o que eu disse?
– Hem?
– O pai está no hospital.
– Que é que ele foi fazer lá? Vender seguro de vida aos doentes? (Agora se recordava de que ele fora corretor de seguros.)
– Está doente.
– Como você sabe?
– Mandou me avisar. Não tem ninguém com ele, só a gente do hospital.
Então estava sozinho, depois de muitos anos, e se lembrava da filha para ter companhia no hospital. Não chegou a ter pena. Estavam tão distanciados os dois, que era como se soubesse que um japonês em Yamagata sofria de dor de dentes. A filha esperava um comentário, uma reação.
– Vai lá, querida.
Mais do que isso não poderia dizer, porque não havia nada mais a exprimir. Amores fanados não reverdecem, quando a vida caprichou em esmagá-los bem. Se alguma coisa tivesse ficado exposta à luz, se um gesto dele, mínimo que fosse, ao longo de tanto tempo, alimentasse um resto possível de sentimento, ela agora teria pena. Mas pena de quê? de quem? Se nem de si mesma sentia mais pena, conformada que estava com o irremediável das coisas, e refugiada, também, no pequeno mundo que se construira e em que convivia com artistas obscuros do passado, através de estudos e pesquisas que eram uma fonte de prazer, compensador de alegrias que não tivera no casamento?
– Vai, minha filha, e vê o que ele precisa.
A filha foi e voltou contando que ele estava mal, parece que dessa não escapava. Como de fato não escapou. Sem pessoa alguma para cuidar do enterro, nem bens que pudessem custear a despesa, quem tomaria providências?
Então a ex-esposa, pessoa decidida, acostumada a fazer na hora certa o que é necessário fazer, decidiu presentear o ex-marido com o enterro decente que não tinha merecido, e que a ela custaria uma nota desarrumadora do seu orçamento modesto. Procurou a funerária, disse que pagaria tudo.
O empregado perguntou-lhe, entre xereta e reticente:
– A senhora era companheira do falecido?
– Companheira? Sou viúva dele.
– Perdão, mas o falecido, quando se internou no hospital, declarou que era viúvo. A senhora quer ver? Vamos lá na Secretaria.
– Pois eu sou a viúva do viúvo, entende? E não estou fazendo nada para ficar com a herança dele, que não deixou um tostão de seu, além de me matar no papel. E vamos com esse serviço depressa, que eu preciso cuidar da minha vida de viúva-desquitada há muito tempo, tá bom?
Carlos Drummond de Andrade.
Ontem, tudo por aqui era ficção; o texto do Drummond, não.
Sexta, dia 23, tem mais.
Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui, por curiosidade ou gosto, ajude o autor, clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.
* Carlos Drummond de Andrade, “A viúva do viúvo”, in Poesia e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguiar, 6ª ed. 1988, apud Ítalo Moriconi em Francine Prose, Zahar, 2008.